Num passado não tão distante, ouvíamos por aí que bebê gordinho era sinônimo de bebê saudável. No entanto, hoje já sabemos que a obesidade é um dos maiores problemas de saúde pública no mundo e que as chances de uma criança gordinha torna-se um adulto obeso são grandes. Algumas doenças que há pouco atingiam somente adultos, como diabetes mellitus tipo 2 e doenças cardiovasculares, atualmente já são observadas em faixas etárias cada vez jovens.
A obesidade foi formalmente reconhecida como uma epidemia global pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1997. Na época, a doença era observada com maior frequência na parcela da população com nível socioeconômico mais elevado. Pensava-se então ser uma doença social dos ricos, que tinham dinheiro para comprar muita comida. Entretanto, dados mais recentes mostram que a prevalência está maior nas populações com nível socioeconômico mais baixo. (1)
O mais impressionante, conforme declarado pelo médico endocrinologista, Walmir Coutinho é que:
“À medida que se consegue erradicar a miséria entre as camadas mais pobres da população, a obesidade desponta como um problema mais freqüente e mais grave que a desnutrição.”
Realmente é um dado bastante preocupante. No Brasil, a redução da desnutrição (déficit de peso para idade) passou de 7,1% para 1,7%, mas em contrapartida a obesidade só vem aumentando. (2)
Por que a obesidade se tornou uma epidemia global?
Este aumento crescente da obesidade pode ser explicado com as mudanças no estilo de vida e hábitos alimentares da população. A diminuição da prática de exercícios físicos e o aumento do consumo de alimentos processados ricos em açúcares e gorduras saturadas e pobres em nutrientes são os principais fatores relacionados a esta epidemia global.
No documentário brasileiro “Muito Além do Peso” lançado em 2012, o famoso chefe de cozinha e apresentador de TV Jamie Oliver diz que:
“Nós, adultos das últimas gerações, abençoamos nossas crianças com uma expectativa de vida menor do que a nossa. Seu filho vai viver dez anos a menos do que você por causa do ambiente alimentar que construímos”.
Esta declaração é um tanto quanto chocante, mas é a realidade do Brasil e do resto do mundo. Observe abaixo, num quadro retirado do mesmo documentário, a porcentagem de crianças com obesidade e sobrepeso no mundo:
Já no âmbito nacional, 33,5% das crianças brasileiras sofrem de sobrepeso ou obesidade.
Quanto aos dados demográficos de excesso de peso e obesidade infantil por sexo no Brasil, temos: (3)
Evolução da frequência de excesso de peso no Brasil entre crianças e adolescentes:
Evolução da frequência de obesidade no Brasil entre crianças e adolescentes:
Ainda segundo a OMS, entre 1980 e 2013 a prevalência de excesso de peso e obesidade combinados aumentou 27,5% nos adultos e 47,1% nas crianças em todo o mundo. (4)
A projeção é que, em 2025, cerca de 2,3 bilhões de adultos estejam com sobrepeso; e mais de 700 milhões, obesos. O número de crianças com sobrepeso e obesidade no mundo poderá chegar a 75 milhões, caso nada seja feito. (5)
Qual a relação entre a alimentação e a obesidade?
Um dos principais fatores que contribuem para a obesidade é a ingestão excessiva de alimentos processados/ultraprocessados e com baixo valor nutricional. Tudo isso começou com o aprimoramento e automatização das linhas de produção da indústria alimentar, a qual teve início no período entre guerras, devido a grande demanda por alimentos de fácil transporte e consumo, com a finalidade de atender um momento emergencial. Após a Segunda Guerra, a tecnologia investida nos alimentos processados precisava repousar noutro lugar rentável e então, neste momento, fomos apresentados a esta nova categoria de alimentos.
Para ficar bem claro, de acordo com o Guia Alimentar do Ministério da Saúde de 2014:
Alimentos processados são aqueles fabricados pela indústria, com a adição de sal, açúcar ou outra substância de uso culinário nos alimentos in natura, para torná- los duráveis e mais agradáveis ao paladar, como por exemplo os extratos ou concentrados de tomate. Estes são produtos derivados diretamente de alimentos e são reconhecidos como versões dos alimentos originais.
Alimentos ultraprocessados são formulações industriais feitas inteiramente ou majoritariamente de
substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, amido, proteínas), derivadas de constituintes de alimentos (gorduras hidrogenadas, amido modificado) ou sintetizadas em laboratório com base em matérias orgânicas como petróleo e carvão (corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários tipos de aditivos usados para dotar os produtos de propriedades sensoriais atraentes). Exemplos: biscoitos, sorvetes, balas, misturas para bolo, barras de cereal, sopas, macarrão e temperos ‘instantâneos’.
Para prolongar a duração dos produtos e intensificar o sabor, ou mesmo para encobrir sabores indesejáveis de aditivos, alguns ingredientes são adicionados em excesso, tais como o sal, açúcar, gorduras saturadas e hidrogenadas. Por isso, é muito importante ler o rótulo e tentar não cair nas pegadinhas, já que muitas empresas utilizam nomes desconhecidos da maioria das pessoas, como por exemplo carboidrato ao invés de açúcar, o que dificulta a verificação dos ingredientes.
Mas todas as calorias são iguais?
Segundo o Dr. Walmir Coutinho, as calorias não são todas iguais. Um excesso diário de 100 calorias pode levar uma pessoa a engordar até 4 quilos por ano. Mas 100 calorias em excesso de fruta não vão engordar tanto quanto 100 calorias em excesso de açúcar ou refrigerante. As calorias são diferentes e por isso têm diferente potencial para engordar.
Por exemplo: uma lata de coca-cola tem 149 calorias, enquanto que metade de um abacate tem aprox. 232 calorias. Os alimentos ultraprocessados “enganam” os dispositivos do nosso organismo que regulam o balanço de calorias. Esses dispositivos (situados no sistema digestivo e no cérebro) são responsáveis por fazer com que as calorias ingeridas por meio dos alimentos igualem as calorias gastas com o funcionamento do organismo e com a atividade. A questão principal é que estes dispositivos tendem a subestimar as calorias adivindas dos produtos ultraprocessados e, como consequência, ingerimos mais calorias do que necessitamos. O resultado é a obesidade. (6)
Além de esconder essa realidade, a publicidade incentiva o aumento do consumo dos alimentos ultraprocessados, principalmente através da televisão, atraindo a atenção dos adultos e, principalmente, das crianças.
Qual o impacto da publicidade na obesidade infantil?
A propaganda de alimentos é um dos grandes obstáculos para escolhas alimentares saudáveis, principalmente das crianças. O documentário “Criança, a Alma do Negócio” apresenta de forma clara como a sociedade de consumo e as mídias de massa impactam na formação de crianças e adolescentes, bem como nas escolhas alimentares. Ele mostra que a criança brasileira é a que mais assiste TV no mundo.
São aproximadamente 5 horas em frente a TV por dia e, bastam apenas 30 segundos, para uma marca influenciar uma criança.
De acordo com o documentário, 80% da publicidade de alimentos dirigidas as crianças são de alimentos:
- calóricos;
- com alto teor de açúcar;
- com alto teor de gordura;
- com alto teor de sal;
- pobre em nutrientes.
Atualmente, as crianças consomem mais lanches processados do que no passado. A ingestão média de calorias proveniente dos lanches aumentou de 450 para 600 calorias por dia, representando 25% da ingestão energética diária. (7)
Isso mostra que as empresas alimentícias não estão preocupadas com a qualidade dos alimentos oferecidos às crianças, mas sim, com a quantidade de vendas, visando somente o lucro.
Além disso, pesquisas mostram que mães colocam refrigerante nas mamadeiras para as crianças, conforme relatado pelo médico Dr. Fábio Ancona Lopez no documentário “Muito Além do Peso”:
“Com certeza a mãe faz isso porque não sabe que está fazendo uma coisa errada. Ela imagina que se aquilo existe, tem uma propaganda que chama tanto a atenção e que está associado a saúde, bem-estar e sucesso, não tem nenhum motivo para que ela não dê aquilo para o seu filho pequeno.”
Doenças relacionadas ao excesso de peso:
Segundo o endocrinologista Dr. Amélio F. de Godoy Matos, as grandes pandemias modernas, tem nas suas bases o excesso de peso.
De acordo com a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO), vários estudos têm demonstrado que a obesidade está fortemente associada a um risco maior de desfechos, sejam cardiovasculares, câncer ou mortalidade. No National Health and Nutrition Examination Study III (NHANES III), que envolveu mais de 16 mil participantes, a obesidade foi associada a um aumento da prevalência de diabetes tipo 2, doença da vesícula biliar, doença arterial coronariana, hipertensão arterial sistêmica, osteoartrose e de dislipidemia. Resultados de outros estudos, entre eles o Survey of Health, Ageing and Retirement in Europe (SHARE) e o Swedish Obese Study (SOS), apontam para uma forte associação entre obesidade e a prevalência de doenças associadas e queixas de saúde física. (8)
Na infância, a obesidade é o mais importante fator de risco conhecido para as doenças cardiovasculares
na vida adulta, estando associada às mudanças no estilo de vida, em particular ao sedentarismo e ao maior consumo de gorduras e açúcares. Um exemplo é a aterosclerose que tem o seu início na infância, com o depósito de colesterol nos vasos sanguíneos, formando placas de gordura. Essas placas nas artérias coronarianas de crianças podem, em alguns indivíduos, progredir para lesões ateroscleróticas avançadas em poucas décadas. (9)
Além disso, existe o impacto social que a obesidade por causar tanto nos adultos quanto nas crianças. Os problemas psicológicos associados à obesidade são mais comuns que imaginamos e são potencialmente graves, como: angústia, culpa, depressão, baixa autoestima, vergonha, ansiedade, isolamento e fracasso.
É importante destacar que além da problemática da obesidade e das doenças relacionadas, estamos perdendo nossa identidade cultural alimentar. Poucas são as regiões que ainda resistem às mudanças, preservando suas características em relação ao consumo de alimentos tradicionais. É chocante ver que muitas crianças não sabem o que é uma batata, pois só lhes foram apresentadas batatas ensacadas e fritas.
Enquanto o governo não desenvolve políticas saudáveis para mudar o cenário atual de obesidade, cabe a cada um de nós refletir sobre o assunto, resgatando os hábitos alimentares tradicionais e saudáveis para evitar uma calamidade ainda maior. Vamos preservar a saúde das nossas crianças e recuperar a cultura alimentar do nosso país.
1. Saxena AK. Emerging global epidemic of obesity: The renal perspective. Ann Saudi Med [Internet]. 2006;26(4):288–95. Available from: http://epirev.oxfordjournals.org/content/29/1/1.full.pdf+html
2. Comida de verdade no campo e na cidade [Internet]. Brasília – DF; 2015. Available from: http://www4.planalto.gov.br/consea/eventos/conferencias/5a-conferencia-nacional-de-seguranca-alimentar-e-nutricional/documentos-da-5deg-conferencia/versao-online.pdf
3. Melo ME De. Diagnóstico Da Obesidade Infantil [Internet]. 2009. Available from: http://www.abeso.org.br/uploads/downloads/16/552fe98518b8a.pdf
4. Interim Report of the Commission on Ending Childhood Obesity [Internet]. Geneva, SWITZERLAND; 2015. Available from: http://www.who.int/end-childhood-obesity/commission-ending-childhood-obesity-interim-report.pdf?ua=1
5. Diretrizes Brasileiras De Obesidade. ABESO – Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica [Internet]. [cited 2015 Sep 2]. p. 04. Available from: http://www.abeso.org.br/atitude-saudavel/mapa-obesidade
6. Melo EA, editor. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. – 2. ed. – Brasília : Ministério d [Internet]. Brasília – DF: Ministério da Saúde; 2014. 158 p. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira.pdf
7. Mello ED De, Luft VC, Meyer F. Obesidade infantil: como podemos ser eficazes? J Pediatr (Rio J) [Internet]. 2004;80(3):173–82. Available from: http://www.scielo.br/pdf/jped/v80n3/v80n3a04
8. Melo ME De. Doenças Desencadeadas ou Agravadas pela Obesidade [Internet]. 2011. Available from: http://www.abeso.org.br/uploads/downloads/3/5521afaf13cb9.pdf
9. Psicossocial I. Obesidade infantil – impactos psicossociais. Pediatria (Santiago) [Internet]. 2010;20(3):367–70. Available from: http://rmmg.org/artigo/detalhes/374
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